quinta-feira, 28 de abril de 2011

CIDADE INSUSTENTÁVEL - NÃO É ESTE O PLANO!

Não me convenço do que estão fazendo com o Plano Diretor de Desenvolvimento Sustentável de Joinville. A incapacidade de promover um diálogo mais amplo e as visões obtusas estão cultivando um modelo de cidade insustentável.

Decorrente disto, as interpretações distantes dos objetivos da sustentabilidade distorcem valores se postando atrás de trincheiras  defendendo o indefensável. Refiro-me a forma como o planejamento oficial trata de conduzir os debates sobre a cidade que desejamos  levando a regulamentação do Plano Diretor a um mero arrazoado de artigos, parágrafos e itens com uma absoluta falta de amparo em documentos estratégicos que sustentem as proposições.

Organizar o espaço urbano e, por consequencia, a vida das pessoas, suas atividades e expectativas, segue numa linha de absoluta fragmentação territorial, atendendo unicamente a especulação imobiliária, industrial e institucional. Esta postura de servir ao capital (nunca pensei que iria utilizar este termo) se faz numa linha de esperteza, tendo a certeza de que poucos estarão motivados a defender outras causas, alinhando o discurso em direção a objetivos  e público específico. Seguimos o caminho da espcialização de cfazer uma colcha de retalhos sem costura, desprovida de criatividade e, vez por outra, sem fundamentos concretos. Quando acuados, surgem as argumentações desenvolvimentistas ou as que exaltam prioridades aos excluídos.

Este último argumento é fatal, pois segue tão somente a retórica política,  desconversando a complexidade dos temas e, demonstrando uma completa incapacidade de tratar o todo. Vamos assim construindo uma cidade fatiada em diversos pedaços e sem horizonte palpável.

Levamos, neste modelo, a sociedade ao inexorável sofrimento, dos que almejam pouco, talvez apenas melhorar sua qualidade de vida, aos que sofrem as conseqüencias do processo de exclusão socio-territorial. Construiruma cidade sustentável não é apenas melhorar rendimentos, pois necessita de uma amplo debate sobre o que desejamos para o nosso futuro num sentido amplo e para toda a população urbana.


Citando um texto do arquiteto Nabil Bonduki - (...) "O modelo de planejamento que segue sendo colocado em prática pressupõe uma cidade baseada no automóvel, nos deslocamentos diretos das garagens dos condomínios para os estacionamentos dos shoppings e dos grandes edifícios comerciais. Pressupõe fortalezas e torres de vidros fechadas por sistemas de ar condicionado, vigiadas permanentemente. Pressupõe um crescimento horizontal ilimitado, destruindo áreas de proteção ambiental e zonas rurais, o chamado cinturão verde. Pressupõe o esvaziamento do espaço público, que vem junto com a insegurança das ruas.

São dinâmicas urbanas que não poderão se manter. No Estado de São Paulo, a frota de veículos cresceu, entre 2002 e 2006, quatro vezes mais do que a população, atingindo uma média de um veículo para cada 2,6 habitantes. Esse número só tende a crescer com o aumento da frota de carros usados e com uma pequena melhoria na renda da população: em São Caetano, na região metropolitana de São Paulo, já existe um veículo para cada 1,4 habitantes, número próximo a dos EUA, o país do automóvel. Se as cidades brasileiras não alterarem a maneira como lidam com a mobilidade urbana, priorizando o transporte coletivo e levando os motoristas a deixarem os carros em casa, as cidades se tornarão inviáveis, com congestionamentos monstruosos, alto consumo de energia e forte geração de fumaça. Tudo contribuindo para o aquecimento global.

Esse modelo de cidade que o Brasil está alimentando – tanto na parcela excluída como na integrada ao mercado – produz, como se vê, um forte impacto negativo no meio ambiente. Mas nem tudo está perdido, pois se difunde na sociedade uma consciência de que é necessário reverter esse processo, caminho que não é simples nem rápido, pois significa enfrentar fortes interesses – imobiliários e industriais – e uma cultura urbana firmemente estabelecida nas classes sociais mais privilegiadas, que vêm se acostumando a um modo de vida baseado na fragmentação, na segregação social e no culto ao espaço privado e individual.

Eis que percebemos que o modelo daqui e dali seguem numa mesma lógica, cujo propósito parece apenas atender um cronograma, visando preferencialmente as demandas especulativas ou voltadas a lógica da construção de espaços que tenham como único valor o status financeiro, eliminando a ótica da qualidade pelo cultivo das identidades, das peculiaridades, das histórias, do conforto, da ambiência, da harmonia e da integração socio espacial. 

Graças e Desgraças das Nossas Cidades

Revista Cult - Publicado em 14 de março de 2010

Arquitetura não é uma disciplina exata. Vivendo entre a arte e a técnica, ela é também poética

Amamos e odiamos nossas cidades quase que simultaneamente. Basta um comentário forasteiro para sairmos em defesa apaixonada da cidade em que vivemos. Mas entre nós, moradores, não poupamos críticas às carências e defeitos de nossa cidade, que tanto sofrimento nos causa. E os arquitetos, o que é que têm com isso?

Não é de hoje que nós, arquitetos, vagamos por infindáveis discussões teóricas e por inúmeros tratados sobre questões de programa e projeto, os chamados métodos projetuais. Esse é um tema que dá conformação à arquitetura ao longo dos tempos: é um fundamento. Mas nem por isso podemos afirmar que nossas cidades – as brasileiras – têm apresentado progresso em seus níveis de conforto urbano e de vida conversável, como gostaria Fernando Pessoa. Muito pelo contrário.

Pela própria natureza da arquitetura – transitar numa zona do fenômeno ou da fenomenologia – o espaço só existe quando experimentado, quando vivenciado no tempo de cada um ou de cada comunidade. Portanto, questões de programa e projeto estão imediatamente afeitas ao uso do espaço e às diferentes percepções dos diferentes usuários (cultural e psicologicamente falando). Não há abordagem absoluta ou exata para se chegar a um bom projeto arquitetônico. No processo projetual, como num jogo de xadrez, a cada ato ou decisão tomada, devemos rever táticas e estratégias para a obtenção dos fins; a cada ação, interferimos e modificamos a própria realidade com que estamos trabalhando. Programa e projeto se transmutam no tempo/espaço da realização arquitetônica, dos primeiros estudos e abordagens do problema, ao final da obra e sua ocupação e uso. Mudanças políticas e contingências de toda ordem afetam diretamente a arquitetura.

Definitivamente, arquitetura não é uma disciplina exata. Vivendo entre a arte e a técnica, produzindo arte e técnica, ela é também poética.

Podemos identificar em vários momentos da história da arquitetura ocidental quando é que conceitos de programa e projeto estiveram absolutamente integrados, fundidos em unidade de ação, e quando estiveram dissociados, dando espaço para a produção de uma arquitetura de baixa qualidade. Com raras e boas exceções, vivemos hoje, de modo geral, este segundo momento, em que o projeto se desvincula do programa de tal maneira que as conseqüências nefastas são imediatamente sentidas em nossas cidades, no nosso cotidiano.

Abrindo um parêntese, é importante esclarecer aqui que não estamos falando de programa como um simples elenco de necessidades espaciais. Entendemos por programa a mais abrangente e profunda demanda humana, seja no âmbito da vida íntima, individual, seja na vida em coletividade, pública. Programa enquanto tomada de consciência do significado ou da identidade do lugar, do lugar enquanto sítio habitado ou em vias de o ser. Cito aqui o arquiteto português Álvaro Siza: “… uma coisa é o lugar físico, outra coisa é o lugar para o projeto. E o lugar não é nenhum ponto de partida, mas é um ponto de chegada. Perceber o que é o lugar é já fazer o projeto”.

Portanto, projetar é captar e inventar o lugar a um só tempo. Vivemos a época da pós-cultura do espetáculo, a cultura da aparência. Nos dias de hoje, importa menos o que você é do que o que você parece ser. Aparência é tudo. Aparência como fim em si mesmo. E a arquitetura é um dos melhores veículos dessa falácia. Não importando o programa, seu conteúdo, ou, como quer Siza, o lugar, o projeto toma o rumo e as regras do mais cruel formalismo. Cruel porque despreza o fato de que seu objetivo final é o uso – o comportamento humano e o próprio ser humano, com suas idiossincrasias, suas diferenças culturais, suas diversas concepções de mundo e formas de estar no mundo.

Assim, a arquitetura se desumaniza, brindando às aparências, criando simulacros ou formas dissimuladas de segregação, dominação e poder. São os incontáveis marcos urbanos nefastos.

Podemos aprofundar um pouco mais esta idéia de programa para além da demanda explícita ou subjacente de um grupo ou de grupos de pessoas. Podemos agregar ao conceito de programa o uso ou a vida que se dará no futuro espaço a ser construído, fatos posteriores, portanto, ao projeto. Se concebermos projeto como forma analítico-investigativa e propositiva a um só tempo, estaremos fundindo os conceitos de programa e projeto em uma mesma unidade de ação. Ação que lê, avalia, interpreta, propõe e modifica relações humanas, comportamentos individuais e coletivos, trocas e convivência; ação que produzirá conforto ou desconforto, serenidade ou agitação, prazer ou sofrimento. Afinal, projetar é desejo de realizar algo no futuro.

Saber interpretar, ler, traduzir em espaço a vontade mais íntima do indivíduo ou anseios coletivos, é a tarefa do arquiteto. Ao projetar, o arquiteto deve dar muito de si, deve se colocar na situação do outro, vestir as várias peles do lobo nas inúmeras situações que podem se apresentar. Ao projetar um restaurante, ser cozinheiro e gourmand; um hospital, ser doente e médico; uma escola, ser aluno e professor… Arquitetura será assim entendida como uma roupa que vestimos, ou que nos veste: confortável, justa, apropriada ou absolutamente desconfortável e imprópria física e psicologicamente falando. E não importa se a escala é a do objeto, a da casa ou a da cidade. O desenho de um copo ou de uma cadeira importa tanto quanto o de uma praça ou de um boulevard.

Esse discurso pode parecer um exagero quando refletimos sobre nossa prática arquitetônica. Mas o fato é que nessa prática tudo cabe. Na poética da arquitetura, podemos abarcar bons bocados do mundo, seja no tempo, seja no espaço. Guiamo-nos pela imaginação e pela responsabilidade civil, pela liberdade de criação e pela busca de rigor em nossos projetos.

Tratando-se de programas ou demandas de espaços públicos ou marcos urbanos, existem momentos em que devemos ser muito contundentes, afirmativos em nossa proposição/projeto. Mas existem também aqueles momentos em que devemos quase desaparecer, como um contra-regra de teatro: dar toques mínimos em pontos específicos, ser invisíveis, ajeitar coisas com mãos leves… e o resultado se sentirá. Cito aqui o exemplo do Sesc – Fábrica da Pompéia (São Paulo), que vai da delicadeza da recuperação e restauro da antiga fábrica de tambores à violência da inserção dos blocos esportivos em concreto aparente, com suas passarelas feéricas a la Metrópolis, de Fritz Lang. O fazer arquitetônico transita entre estes dois extremos, cabendo a cada um de nós, arquitetos, acertar o ponto. E aí não se trata de loteria ou sorte. Nossas escolhas deliberadas afetarão irremediavelmente a vida de muita gente, uma vez que arquitetura, quando realizada, não poderá ser guardada numa gaveta ou posta fora pela janela. Será sempre mais uma graça ou desgraça de nossas cidades.

Marcelo Carvalho Ferraz - é arquiteto. Lecionou na Washington University, e atualmente é professor na Escola da Cidade, em São Paulo

terça-feira, 26 de abril de 2011

A NOSSA INFEDELIDADE COM O RIO CACHOEIRA

A beira do rio Cachoeira constitui parte importante do patrimônio histórico de Joinville, pois conforma um amplo segmento urbano que interliga diversos bairros, do Guanabara ao Boa Vista, passando pelo Bucarein, Centro, Saguaçu, América, Santo Antônio e Distrito Industrial. Ao longo de suas margens o rio oferece diferentes pontos de vista para a cidade. No entanto, o ponto de vista da cidade para o rio é desfocada, abandonando justamente aquele que teve, e ainda terá, um papel histórico fundamental na construção da cidade.

O Rio Cachoeira foi o ponto de chegada e de partida como atracadouro, por onde chegaram os primeiros imigrantes e por onde partia a riqueza aqui produzida. Foi, nos primeiros anos do nascimento da cidade, a principal infraestrutura para a circulação de pessoas e mercadorias. Ademais, configura uma paisagem natural belíssima, compondo-se com a paisagem da história da cidade de Joinville, que teima e não reconhecer a sua importância.

Com o advento da estrada de ferro e as ligações rodoviárias para o Norte, Sul e interior do Estado, o rio deixou de ser necessário como via para o transporte, perdendo interesse econômico que, por consequência, passou a ser desconsiderado pelas pessoas que aqui viveram e vivem.

Desde então, a cidade passou a virar as costas para o Rio Cachoeira transformando-o na latrina da cidade e também a maior de suas “dores de cabeça”, lembrado-o unicamente pelas enchentes ou pela poluição, já que virou vala para todos os tipos de despejos e resíduos.

Joinville, cidade de 160 anos, com mais de 500 mil habitantes e centro regional desde sempre tem um acervo de cultura material e imaterial que se mantém sem a amplitude e visibilidade pública que merece, fazendo com muito destes patrimônios venham a ser esquecidos e, portanto, abandonados.

Se não conseguimos reconhecer o nosso antigo cais do porto como um ponto destacado da história local, é certo que estamos sofrendo de uma contaminação da memória, onde apenas é importante o que é supérfluo, midiático e passageiro. Este mal nos leva ao inexorável esquecimento da dança, do folclore, das festas populares, das manifestações históricas, dos contadores de história, do ruralismos, da gastronomia típica e de tantas outras identidades que vem sendo perdidas.

Nossas raízes passam a ser tênues no imaginário popular, sem os registros que nos identificam e estão sumindo. Mesmo as outras novas formas de emergência da cultura urbana carecem de valorização, onde “lugares” e espaços públicos articulados, integrados e bem cuidados poderiam servir como importantes vetores para resgate e incentivo de todas as expressões da cultura local. No fundo, necessitamos recriar ou resgatar o nosso cais, o porto onde possamos amarrar com segurança as nossas culturas.

Neste ponto destaca-se a importância histórica e simbólica do rio Cachoeira, a localização central de seu leito no espaço urbano conotando importância estratégica para a gestão urbana de Joinville. Interligando importantes bairros da cidade, margeando áreas verdes, áreas onde estão situados setores de população de baixa renda, áreas de comércio central, áreas de patrimônio arquitetônico, áreas industriais e de conecção da malha viária urbana, o rio não deve apenas ser despoluído em sua carga liquida, mas primordialmente transformado no mais importante espaço de uso público para a população local e para os que visitam nossa cidade.

Se devidamente valorizado, o rio pode novamente comandar a vida das relações sociais, econômicas e ser responsável pela reprodução das condições de diferentes grupos sociais. O rio pode ainda ser a fonte de abastecimento do consumo cultural e ambiental urbano além de elemento fundamental na articulação dos vários espaços da cidade, servindo à articulação interna (e externa) do espaço urbano.

Símbolo da existência da cidade, o Rio Cachoeira merece um lugar de destaque no uso público da cidade.

O projeto não necessita ser apenas um capricho da elite dirigente e técnica da cidade para viabilizar uma urbanização e paisagismo das margens. É necessário explorar o efeito de sua escala na paisagem urbana bem como o desenvolvimento histórico que configurou a sociedade local. Preservar e resgatar sua presença no espaço da cidade, apesar dos novos equipamentos e do fortalecimento de sub-centros em direção aos eixos viários, trará uma nova oportunidade de usufruir deste espaço público nobre, ofertando variações inimagináveis de cenários, do ambiente natural ao ambiente histórico, do ambiente construído às novas formas de ocupação do espaço urbano ou pela simples e imprescindível oportunidade de construir uma cidade mais sustentável.

Por fim, embora tenhamos o rio no coração da cidade, é necessário trabalhar em prol de uma educação de inclusão e convivência pública, resgatando sua vitalidade e a sua atratividade, especialmente no tocante ao uso do espaço marginal para uma finalidade pública, ao lazer e à cultura, vencendo as poucas alternativas propostas pelo poder público que parecem alinhadas ou pactuadas com as diversas formas de acumulação interminável do capital.

Tem muitas coisas que me incomodam em Joinville, mas o abandono do Rio Cachoeira é o maior dos atestados de infidelidade para com a minha cidade natal e, portanto, serei impertinente, chato, crítico mas também decisivamente pró-ativo em buscar e propor alternativas que o transforme num motivo de orgulho e alta estima.